O pensamento colonizado brasileiro e seus efeitos sobre o empreendedorismo tecnológico nacional

Avanço tecnológico e empreendedorismo costumam andar juntos. É salutar, portanto, que nos últimos poucos anos o espírito empreendedor esteja crescendo nos brasileiros de modo acentuado, sobretudo nos jovens ainda frescos da tinta universitária. Internet, economia estável, boas universidades, globalização e novas tecnologias, muitos fatores estão se alinhando para proporcionar um ambiente adequado ao desenvolvimento tecnológico em solo nacional. Todavia, falta ainda um elemento fundamental. Nossos empreendedores, assim como nossos cidadãos em geral, têm a tendência de supervalorizar os sucessos, idéias e iniciativas alheias, em detrimento de suas próprias. Guiam-se pela convicção de que o sucesso está em aprender alguma fórmula fantástica vinda de longe. Têm, em suma, o pensamento colonizado — normalmente por uma metrópole que não é grande coisa.

Muita gente se impressionou com a venda do aplicativo de troca de mensagens WhatsApp por US$ 19 bilhões neste ano. Naturalmente, empreendedores mundo afora, incluindo no Brasil, lamentaram-se por não terem sido eles os criadores do software. Mas a pergunta não deveria ser “por que não criaram o WhatsApp no Brasil?” [1], para a qual não faltam respostas pouco lisonjeiras ao brasileiro. O correto, creio, seria perguntar por que criaram o WhatsApp em primeiro lugar. Não me entendam mal, reconheço a utilidade cotidiana desse e outros sucessos. Também tenho respeito pelos empreendedores que levam seus projetos adiante, sejam eles simples ou complexos, inovadores ou não — principalmente no Brasil, onde isso já é uma grande coisa. O ponto, porém, é que os grandes exemplos que o empreendedor tecnológico supostamente deveria seguir são demasiadamente simplórios e desprovidos de originalidade, quando não inteiramente estúpidos. Um pouco de estupidez cai bem, mas estamos muito longe da medida saudável. É a era da estupidez que nos engole. São raros e pouco conhecidos os softwares que nos elevam a um novo patamar de possibilidades técnicas [2]. Duvida? Reflita sobre os maiores hits no seu celular e browser [3]. Geralmente temos sistemas para troca de mensagens, compartilhamento de fotos e vídeos, jogos e coisas semelhantes. Pouco que não se pudesse fazer há muito tempo, mas talvez agora com uma roupagem mais sexy ou um marketing melhor. Foi esse modelo lamentável que tomou a imaginação do empreendedor brasileiro. No melhor caso, copia-se bem o que deu certo lá fora (que, por sua vez, costuma ser cópia de outra coisa menos afortunada). É difícil pensar em alguma startup local que fuja disso de modo significativo.

Tal realidade simplesmente não pode servir como a base tecnológica duradoura de uma sociedade, e muito menos de uma civilização. É evidente que o melhor ainda está por vir. E é por isso que admirar esse status quo é um erro. O emprendedor brasileiro olha esse Pantheon de falsos deuses e pergunta-se como pode adentrá-lo. Enquanto olha firmemente para o que mais deu e está dando certo financeiramente, perde de vista o futuro, no qual possivelmente Roma inteira cairá vítima da própria soberba. Ademais, nem por um instante parece questionar a sabedoria de jogar um jogo cujas regras não estão sob seu comando. Num mercado global, se você está seguindo as regras do jogo, provavelmente você já perdeu a vanguarda — porque o jogo não é seu. O importante é criar as regras do seu próprio jogo, para estar um passo à frente, em posição de liderança. A alternativa é ser cidadão global de segunda classe, para sempre à deriva, seja sofrendo com os enganos dos outros (quando erram), seja apanhando as sobras do seu sucesso (quando acertam).

Essa admiração cega e canhestra, muitas vezes oculta sob camadas de sensatez superficial, às vezes pode ser observada às claras, especialmente quando tropeça em si mesma. Que surpresa a minha foi descobri que está na moda pronunciar a palavra app, abreviação inglesa para application, como “a pê pê”, como se fosse a sigla A.P.P. Quem inventou essa prática deveria ser enforcado. E quem a segue deveria fazer uma cuidadosa reflexão: deixou-se levar por uma convenção claramente ridícula, então que outros absurdos menos óbvios não aceitou também?

Onde estão os softwares que automatizam sofisticados conselhos médicos e jurídicos? Onde estão os sistemas que projetam sozinhos as plantas da minha casa, prédio, fábrica ou mesmo de toda uma cidade? Que projetam sites sob medida para mim? Que monitoram e me ajudam a otimizar meu comportamento, minha vida inteira? Onde estão as interfaces que se adaptam dinamicamente à personalidade, educação, inteligência e idade do usuário? Os fundamentos tecnológicos para tudo isso e muito mais já existem, basta dar o próximo passo e avançar no limite do possível.

O mesmo destino rural paira sobre a pesquisa científica, último bastião nas fronteiras do conhecido. A impressão que tenho é de que não se cria muito que seja relevante e de peso por aqui. Não se avança sobre o território novo logo à frente. O que se faz é principalmente brincar, complementar, estender — dir-se-ia mesmo bajular em certos casos — a criação e a exploração de outrem. A origem dessa subserviência está no próprio mecanismo educacional empregado na formação desses quadros. Mandam-se estudantes para fora do país na esperança de se formarem bons pesquisadores, mas o resultado dessas expedições usualmente é apenas o engendramento de embaixadores da ciência alheia. Não temos tanto cientistas quanto temos diplomatas. Há menos inventividade no treinamento científico do que supõe o homem comum. Se serve de consolo, destino equivalente normalmente aguarda os nativos do primeiro mundo. A diferença é que, vez por outra, lá desponta alguém extraordinário, capaz de criar algo original e fornecer um norte aos demais. É assim que avança a linha de frente no mundo desenvolvido. Infelizmente, o mesmo não ocorre muito por aqui, e isso transborda na nossa tecnologia e nos empreendedores que a desenvolvem e promovem [4]. Falta-nos uma fagulha crucial.

Qual a razão de tudo isso? Não compartilho da suspeita paranóica que sempre tenta culpar o estrangeiro “imperialista”. Nenhum agente da CIA me barrou nas bibliotecas e congressos norte-americanos da última vez que estive por lá. Pelo contrário, as potências estrangeiras abrem suas portas e dão conhecimento para quem se dispõe a buscá-lo. A desordem, estatismo e burocracia nacionais também não servem de explicação: que eu saiba, não há lugar no mundo civilizado mais bagunçado, estatista e burocrático do que a França, e há grandes conquistas tecnológicas oriundas de lá [5]. Há alguma coisa mais profunda, mais dissimulada, que permeia o subdesenvolvimento crônico. E como todo mal dessa espécie, o primeiro passo para eliminá-lo é torná-lo visível, pois só assim pode-se combatê-lo eficazmente.

Sinto que o problema central esteja na crença de que há uma fórmula mágica (ou científica, pouco importa) que se faz revelar nos grandes sucessos, no “espírito do tempo”. É a crença do estudante, cuja natureza é ser um receptáculo da sabedoria alheia. O bom estudante é aquele que resolve fielmente todos os problemas que já foram resolvidos, com as técnicas que já foram codificadas. Muito diferente é a atitude dos inventores e pesquisadores genuínos, que “procuram o que ninguém perdeu”, como diria meu pai. Numa sociedade saudável, grande parte dos estudantes são gradualmente transformados em pesquisadores; as certezas lentamente convertidas em dúvidas; a arrogância do engenheiro e do médico sutilmente amaciada na severidade inquisitiva do verdadeiro cientista. Infelizmente, como tantos outros centros de atraso, ainda somos uma nação de meros estudantes. Não surpreende que os melhores alunos acabem com grande freqüência transformando-se em professores, perpetuando assim o ciclo.

Nessa atitude estudantil, penso, está o fundamento sobre o qual se constróem tantos monumentos à pequenez. O fato é que toda fórmula é inventada por alguém, e assim reflete suas ambições, necessidades e circunstâncias. Os empreendedores e cientistas subdesenvolvidos, em especial no Brasil, não percebem que em última instância não há fórmulas, mas apenas gente. E muitas vezes nem mesmo muita gente, mas apenas um punhado de homens ou mulheres. Somos nós, seres humanos, dotados de alguma racionalidade, que levantamos do solo selvagem tudo aquilo que podemos chamar de nosso. Somos nós que dizemos não à natureza e que lhe impomos nossa vontade. A meu ver, é o desejo de ir além do que já foi feito, de explorar os limites do possível, de levar a curiosidade e a criatividade às últimas conseqüências, de ser mestre de seu próprio destino, que realmente cria valor duradouro. Tomemos exemplos, peças, ferramentas, sim. Mas que a criação seja nova, valiosa e nossa. Sejamos ambiciosos, críticos e originais. Chega de seguir fórmulas, passemos a ditá-las.

 

Notas

[1] Mal acabo de escrever este parágrafo e imediatamente me deparo com a notícia de que inventaram o “WhatsApp brasileiro“. I rest my case.

[2] Dois exemplos mais ou menos conhecidos de que gosto: Kiva Systems e Palantir.

[3] E certamente em outras partes. Limito-me aqui a usar exemplos da indústria de software, minha especialidade.

[4] Nem sequer me dou o trabalho de escrever sobre as grandes empresas brasileiras de tecnologia. Tanto quanto posso ver, estas inovam muitíssimo menos do que nossos empreendedores e cientistas.

[5] Por exemplo, o coração artificial da Carmat, o SolidWorks da Dassault Systèmes, o provador de teoremas Coq, o Método B (notoriamente usado para garantir a segurança de trens automatizados, inclusive os da linha 4 do metrô de São Paulo) e a linguagem Esterel (usada pela Airbus).

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