O Primado da Miséria

Na foto, uma delegação de alguma igreja brasileira posando junto a um templo pagão em Roma. Será que notam as ironias?

Décadas atrás, meu avô paterno fora informado de que certa pessoa próxima, na tentativa de apresentá-la como virtuosa, era “pobre, mas honesta e trabalhadora.” Dizem que sua resposta foi certeira. “Pobreza não é qualidade, se não for honesto vai preso, e trabalhar não passa de uma obrigação”.  A despeito de qualquer outro defeito que pudesse ter — e tinha — esse foi um homem imune às artimanhas demagógicas, que passava por cima sem cerimônias sobre embustes como esse. Um homem assim nunca foi bem visto, e hoje muito menos. De fato, há séculos, milênios, cultiva-se o entendimento da pobreza como qualidade, da fraqueza como virtude, do fracasso como mérito, do defeito como beleza, do ordinário como meta. Tal é o primado da miséria.

Nietzsche identificou essa inversão de valores com a ascensão do Cristianismo. Elementos textuais para esse julgamento não faltam: “Felizes os pobres no espírito, porque deles é o Reino dos Céus.”, “É mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no Reino dos céus”, “Não resistais ao homem mau; mas a qualquer que te dá na face direita, volta-lhe também a outra”. Muitas outras passagens poderiam ser fornecidas. Embora teólogos se contorçam para encontrar algo mais conveniente e palatável, o sentido da Boa-Nova é claro: o infeliz herdará a Terra, exatamente por ser infeliz. E não herdou mesmo? Que uma tal ideologia possa ter dominado o mundo é espantoso para uma elite educada, a começar pelos romanos antigos, mas faz perfeito sentido quando se lembra que as massas humanas sempre foram — e em larga parte ainda são — pouco além de tristes, fracas e pobres. O espanto, portanto, é natural mas passageiro. Se vivemos entre criaturas destinadas ao sofrimento, o que há de surpreendente no fato de se agarrarem a uma crença cujo símbolo máximo é uma grotesca cena de tortura? Não muito.

Seria injusto, contudo, atribuir a responsabilidade e o alcance dessa atitude exclusivamente ao Cristianismo ou qualquer religião semelhante. A verdadeira surpresa está no fato de que o primado da miséria se estende para muito além do sobrenatural, e mesmo para o que é frequentemente entendido como seu contrário. O que o sofredor genérico é para o Cristianismo, o operário o é para o Marxismo. Bertrand Russell já havia notado essa relação entre duas crenças que geralmente se querem antagônicas:

“To understand Marx psychologically, one should use the following dictionary:

Yahweh=Dialectical Materialism
The Messiah= Marx
The Elect=The Proletariat
The Church=The Communist Party
The Second Coming=The Revolution
Hell=Punishment of the Capitalists
The Millennium=The Communist Commonwealth

The terms on the left give the emotional content of the terms on the right, and it is this emotional content, familiar to those who have had a Christian or a Jewish upbringing, that makes Marx’s eschatology credible. A similar dictionary could be made for the Nazis, but their conceptions are more purely Old Testament and less Christian than those of Marx, and their Messiah is more analogous to the Maccabees than to Christ. ”
(Bertrand Russell. History of Western Philosophy, Book II, Part I, Chapter 4. 1946)

Vemos assim que a distinção entre o Comunismo ateísta — bem como seus derivados imediatos, notoriamente os sociais-democratas — e a Cidade de Deus é meramente superficial, são opostos apenas no fato de que correspondem a lados diferentes de uma mesma moeda. Talvez haja uma relação causal mais complexa entre religião e escolas políticas, mas aqui apenas noto a semelhança, os fatos resultantes de quaisquer metamorfoses passadas hoje falam por si.

Não precisamos, ademais, nos limitar a esse espectro político. O fenômeno é largamente, se não por inteiro, apartidário. Os liberais clássicos, tradicionais defensores do livre mercado, criaram sua própria forma de amor à miséria. Bentham chamou-na de Utilitarianismo. A idéia é simples: deve-se maximizar a quantidade de felicidade no mundo, e isso implica necessariamente em elevar todos os miseráveis bem acima de sua condição, independentemente de qualquer mérito ou potencial que possam ter. Para ser justo, tecnicamente uma alternativa Utilitarista seria simplesmente matar os sofredores, mas ainda estou para conhecer algum discípulos dessa crença advogar esse caminho, embora o reconheçam, posto que é uma possibilidade puramente matemática (i.e., eliminar os termos negativos aumenta o resultado final da soma). Note-se que alguém meramente indiferente às mazelas humanas, desapegado de qualquer doutrina, como na prática grande parte de nós somos, dificilmente entenderia um genocídio como tecnicamente viável para atingir um grande bem. Essas e outras dificuldades técnicas e morais motivam debates intermináveis sobre a noção de utilidade e qual seria seu o cálculo correto. Como os Comunistas, os Utilitaristas se querem arautos da razão, mas sua insistência incansável em tentar consertar esquemas teóricos — e práticos — absolutamente falhos mostra que sua motivação é primariamente emocional, e querem na razão apenas uma forma de legitimidade. Pode-se mesmo dizer que são todos religiosos, e que seu deus é a Miséria. [1]

É possível que hoje poucos levem qualquer uma dessas doutrinas a sério. Mas o amor pelo miserável, ainda que sem suas vestes pomposas, é resistente. As evidências se acumulam. Tomemos o exemplo das recentes ondas migratórias na Europa. Milhões de maltrapilhos dos mais variados, em sua maior parte desprovidos de qualquer qualidade excepcional, são recebidos de braços abertos pela maior parte das populações Europeias, apesar da crescente resistência. Simultaneamente, os melhores cérebros do mundo, ainda que poucos, precisam passar por rigorosos crivos migratórios, não raro sem êxito. O que seria isso se não uma valorização do fracasso em detrimento do sucesso? E nem se precisa atravessar o Atlântico para presenciar o fenômeno: os infelizes Haitianos e Venezuelanos cruzam as fronteiras brasileiras tranquilamente, sem trazer muito além de suas desgraças, enquanto pesquisadores estrangeiros de alto nível enfrentam dificuldades burocráticas enlouquecedoras. Tudo em nome de acolher a miséria, que tem prioridade absoluta e para a qual nunca faltam vagas.

Uma objeção concebível está na educação. Pode-se argumentar que todas as desgraças do miserável o precedem, que se tivesse boa educação e condições favoráveis de crescimento intelectual, poderia efetivamente exibir virtudes valiosas. Sem dúvida há verdade nisso. O material humano muitas vezes é desperdiçado. Porém, note-se que em uma tal estratégia o que se valoriza é o potencial futuro de virtude, não a realidade presente. Há limites essencialmente intransponíveis para muitos, e nem se precisa considerar aqueles para os quais a janela de oportunidade já passou. Há crianças que nascem para serem criminosos violentos, e nada no mundo parece ser capaz de lhes retirar esse destino. Já conheci gente assim, e é possível que o leitor também, não são tão raras. Normalmente morrem cedo, mas não sem antes causarem muito mal a seres mais nobres. Há também todos os que deram sorte de nascerem em famílias abastadas, mas que são eles mesmos absolutamente inúteis. O que seria desses, que falharam apesar de disporem de todas as oportunidades, caso tivessem nascidos na pobreza?  Seja no próprio código genético, seja em algum momento primitivíssimo da infância, o homem parece solidificar algo crítico para seu desenvolvimento intelecto-moral, que torna-se parte permanente de sua condição e se manifesta de diversas formas ao longo de sua vida. Quando o elemento é benigno, temos o cidadão produtivo — certo, com seus problemas e dificuldades, mas com algo de bom para aportar ao mundo, e com o essencial para se aprimorar e atingir variados graus de excelência. E quando não é? Em sua maravilhosa História da Loucura, Foucault nos conta que o louco, o pobre e o criminoso já foram entendido como um, espécie de santíssima trindade da miséria. É um tanto injusta, mas há qualquer coisa de verdade na avaliação. Surpreende que aquela pequena semente de erro, rica em nada mais do que vício, quando cultivada cresça e torne-se um arbusto nocivo, cheio de ramos contraditórios, venenosos e espinhosos — apesar de todos os esfôrços do jardineiro?

O erro fundamental não está em exercitar a natural compaixão humana. O problema está em ver naquilo que é um defeito a ser eliminado, uma qualidade a ser exaltada; em espalhar escassos nutrientes entre as muitas sementes defeituosas, prostrando o crescimento daquela única saudável. Um homem pobre, mas inteligente, deve ser retirado de sua pobreza por conta de sua inteligência, não de sua penúria. Um imigrante educado que foge de seu país em guerra deve ser recebido noutro em paz por conta de sua educação e do que ela pode fazer por seus novos concidadãos, não pelo seu sofrimento. O que é resgatado é a virtude desse homem ou mulher, não sua dor. A dor, esta, deve ser eliminada, como ninguém jamais negaria. A questão, que muitos bons corações se furtam de ver, é que para a vasta maioria dos homens e mulheres que sofrem, essencialmente não há nada além de dor e sofrimento. Passam por esta vida na melhor hipótese como que por engano, e na pior como saqueadores. Isso os caracteriza, os define por inteiro. O primado da miséria consiste em dar valor prioritário a esse legado de desgraça, mesmo que de modo inconsciente e implícito. E como tudo tem um custo de oportunidade, alguém mais valoroso em algum lugar — que provavelmente nem mesmo foi notado — paga o preço. O indivíduo sem futuro ganha, o promissor perde, a sociedade como um todo em nada se beneficia e talvez regrida. Quando colocado assim, não deixa de soar como uma espécie de insanidade. Como podem verdades tão evidentes serem tão ignoradas? A miséria tem seus mistérios.

O primado da miséria se manifesta em toda parte. Ao contrário da virtude, que é rara e frágil, a miséria parece infinita, transborda fronteiras e se reproduz incessantemente, gerando sempre novas e estranhas abominações. De governos ansiosos por aumentar auxílios sociais até igrejas conservadoras financiadas por velhotes insensíveis. De revolucionários marxistas em busca da igualdade absoluta até entidades de caridade fundadas por plutocratas. De feministas histéricas até beatas frígidas. De analfabetos até doutores. Gente que discorda em tudo, nisso concorda: a miséria é sagrada, o miserável é um santo. Fragmentos de explicação para esse fenômeno não faltam, mas uma teoria completa e satisfatória me escapa. Tampouco me arrisco a recomendar uma estratégia de combate. Talvez nem sequer possa ou mesmo deva ser combatido no horizonte de tempo que conseguimos contemplar. Haveria hoje outro caminho para a multidão desamparada? Porém, tanto é explicado e melhor compreendido uma vez que essa força seja colocada em evidência, que pode vir a ser de grande utilidade moral e alivio intelectual. Sempre que uma atitude se fizer necessária, ou um fato gerar confusão, pergunte-se: estaria o primado da miséria em ação aqui?

 

[1] Embora, quando outros interesses tornam-se prementes, nunca seja muito difícil fugir dessas amarras. Não deve o leitor ficar surpreso quando ver Cristãos declarando guerras mortíferas, Comunistas abraçando o livre mercado capitalista, e Utilitaristas, quem sabe um dia, liquidando sociedades inteiras. A inconsistência é fundamental para a sobrevivência de seres que não podem almejar pela perfeição lógica, e nessa categoria infelizmente todos nós estamos.

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