O ódio criativo

O ser humano é uma criatura de hábitos. Ainda que pregue a mudança e o progresso, e realmente seja capaz disso, precisa antes vencer a inércia que o carrega quase que inconscientemente. Essa tendência para o regular manifesta-se de muitas formas, uma das quais ganhou notoriedade histórica durante a Revolução Industrial: o ódio pelas máquinas, encabeçado pelo que ficaria eternamente conhecido como Ludismo. Longe de estar arquivado por definitivo nos anais da História, um ranço semelhante ainda persiste hoje. Deparei-me com ele nas últimas semanas e dei-lhe um nome: é o ódio criativo.

Os fatos históricos concretos são bem conhecidos, mas por si só são inúteis. Sua interpretação faz toda a diferença e mostra como a nossa percepção da realidade é embebida em teoria. Assim, há ao menos dois modos de ver os eventos do século XIX: (i) máquinas mais avançadas começaram a tomar o lugar dos operários, que, temendo uma redução intolerável em sua qualidade de vida, reagiram destruindo-nas; ou (ii) máquinas mais eficientes aumentaram a produtividade do operário individual, liberando grande parte deles para novas aplicações, além de terem reduzido o custo dos bens de consumo para esses mesmos operários, embora boa parte dos trabalhadores afetados tenha sofrido com a mudança e reagiu destruindo o elemento local que mais diretamente parecia atacá-lo, as novas máquinas. A interpretação (ii) mostrou-se correta com o tempo, mas é fácil compreender por que o operário ludita não a viu: basta comparar o tamanho e a sofisticação de cada frase.

A destruição das máquinas industriais parece ter ficado no passado. Hoje são poucos os que defendem sua aniquilação, e menos ainda os que não se maravilham com o progresso rápido que a engenharia mecânica e eletrônica tem feito nas últimas décadas. O operário de hoje quer no máximo abocanhar parte dos lucros que elas produzem, ao invés de almejar a redução dele e seu patrão a um estado comum mais pobre e manual.

Todavia, como já se disse muitas vezes antes, hoje passamos por uma nova revolução. O nome definitivo que levará ainda está em aberto, mas por enquanto é conhecida como a Revolução da Informação. O que os teares, esteiras, polias e engrenagens fizeram para a produção de bens físicos no século XIX, hoje os computadores e as redes de comunicação fazem para a produção de bens intelectuais. Mostrando que plus ça change, plus c’est la même chose, esta revolução segue por um caminho curiosamente parecido. Examinemo-lo mediante um exemplo concreto de seus primórdios: a prensa de Gutemberg.

Sim, a mecanização da informação no mundo ocidental como o conhecemos não começou com os computadores do século XX, e sim com os tipos do século XIV. Como é tão comum com as tais revoluções, suas sementes são espalhadas por séculos até que um vento favorável as leve para o primeiro plano da História. Poucas coisas são mais lentas do que uma revolução digna do nome. E como toda revolução econômica, essa também deve ter causado estragos temporários: imaginem quantos copistas perderam seus empregos.

Seguindo nessa tradição, alcançamos outro invento, a máquina de escrever. Menos eficiente para grandes volumes, mas incomensuravelmente mais prática para o uso do escritor individual, o registro esporádico e até para a elaboração inicial das idéias destinadas à prensa. Um salto de produtividade para a mente, sem dúvida — mas o início da lenta morte da grande arte da caligrafia [1].

Chegamos então ao computador pessoal moderno, fronteira na qual estamos. Quase ninguém mais usa máquinas de escrever, os processadores de texto (como Word da Microsoft) tomaram-lhe o lugar. Geralmente vê-se nisso um grande progresso. Eu vejo um anacronismo. O problema pode ser compreendido se observarmos que um computador é mais do que uma máquina que aumenta nossa produtividade intelectual; trata-se da máquina mais sofisticada possível para isso, no passado, presente e futuro. Esse é um resultado básico em Computação [2], normalmente relegado aos círculos acadêmicos, mas de importância prática enorme: certamente não é possível que a melhor aplicação para o ápice da conquista ferramental humana seja simular uma grosseira máquina de escrever — que é essencialmente o que faz um processador de textos como o Word.

Ninguém realmente quer uma máquina de escrever digital. O que as pessoas querem é poder se exprimir de modo eficaz, trazer ao mundo suas idéias de modo organizado e eficiente. Esse é o propósito real por trás desse software tão corriqueiro, mas que permanece oculto porque foi concebido sem a idéia explícita de dar suporte ao intelecto do usuário (bastou-lhes dar suporte aos dedos e olhos) [3]. É necessário explicitar e investir nesse propósito maior e mais nobre, a batalha pelo futuro trave-se aqui.

Quando criei o Liberalis, mantive esse princípio em mente. A razão pela qual o meu usuário não pode “desenhar” a aparência do site não é preguiça minha, mas uma decisão crucial: o usuário deve se preocupar apenas com a informação que deseja transmitir (seu currículo, seus serviços, suas idéias, etc), e é responsabilidade da ferramenta dar a melhor aparência possível para essa informação. Nesse espírito, testei diversos motes para chamar a atenção do visitante na homepage. O que ganhou (i.e., o que fez mais pessoas criarem uma conta) foi este: “Esqueça programadores, designers e artistas. No nosso sistema, tudo é automático, simples e rápido” [4]. Não apenas encaixa-se perfeitamente na filosofia descrita acima, como também atende aos anseios dos consumidores. Ou seja, um lema excelente. Não obstante, foi aqui que me deparei com os herdeiros do Ludismo.

A maior parte dos consumidores que alcanço é muito receptiva a essa abordagem. Nas última semanas, porém, um dos meus anúncios no Facebook, destinado a freelancers, chegou à classe dos “designers e artistas”. Não me passou pela cabeça que alguém poderia ficar ofendido com ele, posto que, comprovando ainda mais a hipótese inicial, foi um dos mais eficazes na categoria. Como pode ser visto em alguns dos comentários na figura abaixo, me enganei.

Se a propaganda dissesse que os programadores, artistas e designers são, digamos, todos picaretas, seria natural sentir-se ofendido. Mas tudo que o anúncio diz é que você não precisa deles para fazer um certo tipo de coisa (a saber, criar seu site de divulgação profissional). O motivo não é especificado, embora as qualidades do sistema sejam exaltadas em contraste com a contratação de serviços sob medida. Cada cliente que clica no anúncio e se registra no sistema tem seu motivo: uns porque serviços sob medida são caros, outros porque tiveram experiências ruins no passado, e outros simplesmente porque têm pressa e não querem complicações. Não foi, pois, exatamente a um sentimento de simples ofensa que os indignados reagiram. Foi o medo primal da obsolescência, o mesmo sentimento selvagem que guiou os luditas quase duzentos anos atrás. Não quebraram os servidores porque não podem, mas desabafaram sua raiva. “Nós, programadores, designers e artistas, somos essenciais, damos forma e função ao mundo, trazemos as idéias à vida; como alguém ousa sugerir que podemos ser substituídos?” Eis o ódio criativo.

Assim como os luditas, essas pessoas não só estão sendo guiadas por motivos escusos, mas sobretudo estão agindo contra seu próprio interesse de longo prazo. O que não percebem é que a capacidade de um programador, designer ou artista é muito mal aproveitada na confecção de artefatos funcionais concretos particulares, artesanais. Assim, não se trata de subsituí-los, mas de elevá-los a um novo patamar de possibilidades criativas, liberando-os das tarefas de baixo nível que agora as máquinas conseguem cada vez mais fazer. Por exemplo, ao invés de definir um design — entendido aqui em seu sentido amplo, que inclui aspectos de software e de arte — particular, o designer desse futuro que vislumbro poderá definir uma família de designs, empregando alguma espécie de técnica algorítmica para tanto. Sua criatividade ainda será fundamental, mas resultará não em um único bom resultado, e sim em cententas, milhares, ou até milhões, com apenas algumas horas de trabalho. Será uma criatividade de alta ordem, exponencialmente mais poderosa e produtiva. Essa será a norma, existirão ferramentas para tornar esse processo corriqueiro, e quase ninguém olhará para o passado com muita saudade. O design artesanal ainda existirá, mas estará restrito a alguns nichos e eventualmente será um luxo extravagante, mais ou menos como a caligrafia é hoje.

 

Algumas pistas desse futuro já podem ser vista, especialmente no tocante ao desenvolvimento de software para vários dispositivo diferentes. Por exemplo, há um esforço para que o mesmo programa que é exibido num desktop possa ser automaticamente adaptado e mostrado num dispositivo móvel como um smartphone, que tem características físicas bem diferentes [5]. Afinal, geralmente é mais barato fazer apenas um programa do que dois ou mais. Isso exige do designer um pensamento mais abstrato. É um começo humilde, mas evidencia as pressões econômicas que impulsionam o progresso.

No que se refere a mim, vejo o Liberalis como apenas um esboço nesse sentido, mas meu desejo é seguir cada vez mais nessa direção, principalmente com novos produtos. Os que escolhem esse caminho não são necessariamente oponentes dos criadores tradicionais, mas seus aliados em potencial. Eu particularmente tenho grande respeito pelos melhores entre eles e sei que há algo de intangível em seus espíritos, que dificilmente será reproduzido por meios artificiais [6], mas que sempre pode ser auxiliado. Há aqui ainda uma outra excelente possibilidade de colaboração, visto que o próprio processo criativo pode ser, ele mesmo, projetado e equipado com criatividade. Portanto, esse ódio que observei já nasceu obsoleto e está condenado à implosão; aceleremos esse processo! Somos mais fortes juntos.

 

Notas

[1] Da qual, devo dizer, sou um adepto. Não levei minha educação nesse sentido muito longe, mas sou orgulhoso do que aprendi e aprecio uma boa caligrafia. Me entristesse ver essa arte definhar.

[2] Me refiro aqui à Tese de Church-Turing, pela qual acredita-se que todos os mecanismos de computação geral imagináveis são essencialmente equivalentes com relação ao que conseguem computar.

[3] Existem sistemas menos conhecidos que seguem nessa linha mais inteligente, sobretudo permitindo a separação da apresentação do conteúdo. Um deles é o LaTeX, famoso na Ciência da Computação, mas desconhecido do público em geral. Não obstante, essas ferramentas ainda têm problemas fundamentais, e mesmo as capacidades que já oferecem ainda são de uso difícil para um usuário comum.

[4] Duas outras alternativas foram “Nosso objetivo é lhe fornecer as ferramentas necessárias para tornar-se independente na Internet.” e “Neste exato momento, alguém está procurando por profissionais como você na Internet. Seja encontrado.”

[5] Com relação a páginas da Web, isso é muitas vezes chamado de responsive design hoje em dia.

[6] Provavelmente não antes do problema maior da inteligência artificial forte ser resolvido.

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